Siri azul do Atlântico americano: lixo ou tesouro do mar?
Por Rafael Fernández de Alaiza García-Madrigal
Publicado em 30/11/2015
No vasto litoral brasileiro, quase todos conhecem os siris, que são muitas vezes pescados com o camarão e servem para a preparação de saborosos pratos.
No entanto, poucas pessoas conhecem a real distribuição dos siris ao longo da costa atlântica e tão pouco os milhares de toneladas que são capturadas anualmente deste crustáceo. Além disso, a população não imagina como apenas um prato de “siri mole” pode atingir preços elevados.
Uma prova do pouco valor atribuído ao siri nos países da costa atlântica da América Central e do Sul, é o fato deles serem descartados como lixo na pesca de arrasto de camarão. Como lixo mesmo?
É assim, em barcos de camarão de médio porte nós observamos siris, desde juvenis até adultos em tamanho comercial. Os siris são “varridos” de volta para o mar após a triagem do camarão, o que também acontece na pescaria artesanal deste crustáceo.
No último arrasto do dia em canoas ou pequenas embarcações, o pescador lança toda a captura na areia, para a triagem. Depois de retirar o camarão, as esponjas, gorgonias (tipo de coral), pequenos peixes e crustáceos (como os siris), todos estes animais, também chamados de fauna acompanhante (Figura 1), são descartados e enterrados na areia como lixo!
Fig. 1. Os siris fazem parte da captura incidental (fauna acompanhante) na pesca do camarão.
Foto: BycatchSkateCroppedRotates_0
Mas, apenas alguns minutos pesquisando na internet ou folhando as páginas de um livro ou revista especializada, para encontrar uma outra realidade. Que valor têm os siris, por exemplo, nos Estados Unidos?
Pretendemos nesta nota, responder a esta pergunta usando o exemplo do siri azul. Esperamos que, se você continuar lendo, será informado do problema e consequentemente poderá mudar a sua percepção da importância e do valor destes interessantes animais.
O siri azul, Callinectes sapidus (Rathbun, 1896), é um animal onívoro, ou seja, come quase tudo: pequenos peixes, ostras, mexilhões, gastrópodes, poliquetas e insetos. Além de ser predador de organismos bentônicos (que vivem no fundo do mar), eles também realizam canibalismo (principalmente de outros siris recentemente mudados), por sua vez são presas para muitos predadores, incluindo mamíferos, aves e peixes como robalos e corvinas1.
Fig. 2. Medindo um espécime do siri azul, Callinectes sapidus.
Foto: 6a00d8341bfb5353ef01bb07f3e2e3970d
Esta espécie se distribui do Canadá ao norte da Argentina 2,3. Mas, além da distribuição de populações naturais, também se dissemina na Europa (Mar do Norte, Mediterrâneo e o Mar Adriático) e no Japão. Estas introduções foram intencionais ou devido ao transporte de larvas na água de lastro de navios, sendo considerado nestes locais uma espécie invasora.
Além da extensa área de ocorrência dessa espécie, mais de 12.000 km de distância entre os extremos da distribuição só na América, o lugar onde o siri azul é, por assim dizer, o protagonista do filme é a costa atlântica dos Estados Unidos, onde sua pescaria é reconhecida como uma das maiores do país. Isto especialmente na baía de Chesapeake, nos estados de Maryland, Virgínia e Delaware4, onde ele se tornou um símbolo local. Uma das características desta pescaria é a participação de centenas de milhares de pescadores artesanais na atividade.
Fig. 3. Os siris capturados com um “pot” (armadilha).
Foto: http://www.mdsg.umd.edu/topics/blue-crabs/blue-crab-industry
Na história deste “amor” entre o siri azul, pescadores e fãs de frutos do mar na costa leste e sul dos Estados Unidos, não podemos deixar de mencionar o “siri mole”. Este é o animal que em fase de muda, pode ser consumido inteiro, como, digamos, um hambúrguer. De acordo com um dos historiadores, tudo começou a mais de um século atrás quando, pela primeira vez, um pescador pegou um siri mole, fritou, colocou entre dois pães e comeu5. O que se seguiu é história.
Exemplares de siri azul com exoesqueleto (casca) rígida (período também chamado de intermuda), foram capturados nos Estados Unidos 60.700 toneladas, com valor de 191,9 milhões de dólares em 2013. Desse total, os principais desembarques corresponderam aos estados de Louisiana (29%), Maryland (18%), Virginia (18%) e Carolina do Norte (17%). O preço médio no momento do desembarque do siri azul “duro” tem aumentado ao longo dos últimos 10 anos. Este preço aumentou para US $ 3.16 / kg em 2013, em comparação com US $ 2.28 / kg em 2012, de acordo com dados oficiais do NOAA – National Marine Fisheries Service6.
Os siris em intermuda são chamados de “hard-shells”, “peelers” (pertos de mudar), “busters” (siris que começaram a livrar-se de seu exoesqueleto velho ou concha), “soft-shells” (siris que acabaram de mudar sua casca e ainda não endureceram), “jimmies” (machos adultos), “sooks” (fêmeas adultas em intermuda) “she-crabs” o “sallies” (fêmeas imaturas) e “sponges” ou “sponges crabs” (fêmeas adultas ovadas)1.
Enquanto isso, milhares de restaurantes e cafés têm se especializado na preparação de pratos à base deste crustáceo, dando emprego a muitas famílias.
Fig. 4. O siri mole frito é um prato popular nos Estados Unidos (à esquerda) e esta espécie é um ícone no Estado de Maryland e da área da baía de Chesapeake (à direita).
Fotos: soft-shell-caranguejo-poboys_recipe_1000x400_1417789815407 e P1090308
Outra tradição de pesca é o “shedding”, que são galpões onde os siris são mantidos em tanques ou gaiolas com água do mar recirculante, até que eles mudem e possam ser congelados completamente moles. Como nessa “janela” de tempo, em que o animal que mudou fica completamente mole dura cerca de 3 horas, o processo para obter este produto comercial com animais em cativeiro é muito complicado e demanda pessoal treinado.
Para ser mais bem sucedido nesse esforço, milhares de horas foram dedicadas a observar os sinais ou mudanças externas que anunciam o início da muda, como a ocorrência de um anel escuro na borda dos pleópodos (patas para natação), que resultou ser o melhor indicador.
Essas habilidades, na infraestrutura dos “sheddings” e até mesmo da licença de pesca para operar, lançado pelo Governo, passa de pai para filho e é um legado como parte da herança familiar.
Fig. 5 Siris nos tanques de um “shedding”, instalação para separar os animais recém mudados.
Foto: f7dd89878c9ba274d05c028ed4b6aac7
Nos Estados Unidos há só para o estudo e controle desta pescaria, uma série de comissões, leis, conferências, revistas científicas, livros, etc. Isto mostra a importância atribuída a esse recurso pesqueiro e a garantia da sua preservação.
Por outro lado, só nos estados mexicanos de Veracruz, Campeche e Tabasco, em 2000, foram desembarcadas mais de 7.000 toneladas. De acordo com estatísticas da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), o volume de captura total mundial de siris azuis nos últimos 50 anos, tem-se mantido estável, vindo a exceder 100.000 toneladas por ano2.
Além das altas captura, os preços do siri mole são extremamente atraentes. Como de costume, o bem mais escasso tem o preço é mais elevado. Nas estatísticas históricas de produção do siri azul Callinectes sapidus nos Estados Unidos, a pesca do siri mole em 30 anos (1950 a 1980) foi de apenas 0,014% das capturas totais desta espécie, enquanto o preço de atacado do siri mole naquele período foi cinco vezes maior (US$ 2.20 / kg) do que os animais “duros” (US$ 0.44 / kg)5.
O produto siri mole é comercializado em vários países com os nomes: SOFT-SHELL CRAB, JAIBA BLANDA ou SUAVE, CRABE À CARAPACE MOLLE e outros. Há pelo menos uma empresa que atua nesta produção no sul do Brasil (Blueshell Brasil)7 e certamente há um potencial interessante desse recurso, muito maior do que é usado hoje. Quantos postos de trabalho e toneladas do alimento descartado hoje poderiam ser produzidos? Existe uma demanda não atendida?
Fig. 6. Marketing dos siris “duros” (à esquerda) ou “mole” (à direita).
Fotos: 57BlueCrab3_900 e P1090033.
Enquanto isso, muitas pesquisas são realizadas buscando aperfeiçoar os métodos de criação, como já é realizado na China. Neste país, são produzidas anualmente 190.300 toneladas de siris das espécies Scylla paramamosain e Portunus trituberculatus, tanto em monocultivo, quanto em policultivo com camarão ou peixes8.
Mas, sem dúvida, devido ao alto preço do siri mole, a tecnologia atualmente mais procurada seria aquela que assegure estimular a muda do animal em cativeiro, para reduzir gastos com mão de obra na revisão constante dos animais e na separação dos recém mudados. Neste trabalho já se usam até câmeras digitais e sensores para detecção da muda.
Em suma, quando você voltar a ver um siri fora d’água, seja no fundo de um bote ou na praia… Devolva-o ao mar! Além de merecer viver, esta é uma espécie de grande valor econômico, de interesse biológico e ecológico, bem como, de potencial pesqueiro.
Então, ele é um lixo ou um tesouro do mar? O que você acha?
Fig. 7. Então… sou lixo?
Foto: 3521998742_607d1b4aec
Referências
1 NOAA. Fisheries of the United States. Current Fishery Statistics. National Marine Fisheries Service. Office of Science and Technology. Fisheries Statistics Division. , 2012. Disponível em: < www.st.nmfs.noaa.gov/Assets/commercial/fus/fus13/FUS2013.pdf >.
2 FAO. Species Fact Sheets. Callinectes sapidus (Rathbun, 1896). . Food and Agriculture Organization of the United Nations. Fisheries and Aquaculture Department., 2015.
3 WILLIAMS, A. B. The swimming crabs of the genus Callinectes (Decapoda: Portunidae). Fish. Bull. , v. 72, p. 685-789, 1974.
4 US-EPA. Chesapeake Bay Program. Science, Restoration, Partnership. U.S. Environmental Protection Agency. U.S. Environmental Protection Agency., 2015. Disponível em: < http://www.chesapeakebay.net/fieldguide/critter/blue_crab >.
5 OTWELL, W. S. A. J. C. C. Review of the soft-shell crab fishery in the United States. Proceedings of the Blue Crab Colloquium , , p. 129-136., Oct. 18-19, 1979, 1982. Disponível em: < http://www.gsmfc.org/publications/GSMFC%20Number%20007.pdf >.
6 NOAA. Chesapeake Bay Office. . NOAA (National Oceanic and Atmospheric Administration’s). A division of the National Marine Fisheries’ Office of Habitat Conservation. , 2015.
7 BLUESHELL. Blueshell Brasil. Siri mole. . Blumenau, Santa Catarina, Brasil. , 2015. Disponível em: < http://www.blueshellbrasil.com/ >.
8 WANSHU, H. A Survey of Mariculture in China. College of Ocean and Earth Science, Xiamen University- Fujian Institute of Oceanography, P.R. of China, 2012.