Adaptações respiratórias em peixes: os efeitos das vantagens evolutivas sobre o sucesso de espécies em ambientes extremos
Por Giorgi Dal Pont
Publicado em 15/04/2015
Os processos adaptativos aos quais todos os seres vivos estão submetidos se caracterizam como o pilar da Teoria da Evolução. Nela, Charles Darwin defende pela primeira vez os conceitos de seleção natural. A seleção natural reflete as adaptações que um determinado organismo sofre e que são incorporadas ao seu material genético, fazendo com que essa “nova espécie” seja, evolutivamente, mais adaptada à condições ambientais e/ou biológicas específicas.
Os peixes são um grupo que apresentam uma imensa variedade de adaptações fisiológicas, morfológicas e comportamentais. Essas adaptações ocorreram durante milhares de anos e auxiliaram a sobrevivência de diversas espécies frente a mudanças ambientais. Atualmente, conseguimos inferir que tais adaptações, além de conferir vantagens evolutivas para diversas espécies, podem ser consideradas como características singulares para espécies de interesse comercial. Nesse contexto, as adaptações respiratórias, que podem facilitar a captura de oxigênio ou mesmo a sua absorção, se caracterizam como vantagens que podem ser consideradas durante a escolha de uma determinada espécies para cultivo.
Por que o oxigênio é importante para os peixes? Assim como a maioria dos animais, os peixes satisfazem suas necessidades energéticas por meio da oxidação de moléculas obtidas após a digestão do alimento. Apesar da grande importância do oxigênio em seu metabolismo, os peixes apresentam uma grande desvantagem, quando comparados aos animais terrestres pois, na água, a concentração de oxigênio dissolvido é muito menor que no ar. Além apresentar valores menores, a concentração de oxigênio dissolvido de um determinado corpo de água está diretamente relacionada com a temperatura e a pressão atmosférica. Quanto maior a temperatura da água, maior é a tendência de perda dos gases dissolvidos nela para a atmosfera. Além disso, quando falamos de animais que tem seu metabolismo regulado pela temperatura ambiental, a temperatura da água também irá fazer com que o consumo metabólico de oxigênio seja aumentado.
Uma das causas mais frequentes de mortandade é a queda na concentração de oxigênio nos corpos d’água. O valor mínimo de oxigênio dissolvido para a preservação da vida aquática, estabelecido pela Resolução CONAMA 357/05 é de 5,0 mg/L. Porém, uma variação na tolerância de espécie para espécie é esperada devido aos processos adaptativos as quais foram submetidas. As carpas (Cyprinus carpio), por exemplo, conseguem suportar concentrações 3,0 mg de oxigênio/L, sendo que a carpa comum chega até mesmo a sobreviver por até 6 meses em águas frias e sem nenhum em condição de anóxia (ausência de oxigênio dissolvido). Tais valores seriam fatais para as trutas arco-íris (Oncorhynchus mykiss) , que necessitam de uma concentração maior de oxigênio dissolvido para sobreviverem, em torno de 8,0 mg/L. O Dourado (Salminus maxillosus) sobrevive por até 22 horas em águas anóxicas a 20 °C, enquanto que as larvas destes peixes são menos tolerantes que os adultos. Isto porque os valores letais dependem do estágio de vida dos organismos, sendo geralmente mais exigentes os estágios mais jovens.
Além do dourado, outras espécies nativas de ecossistemas aquáticos brasileiros apresentam adaptações respiratórias bastante interessantes. Quando pensamos no ecossistema amazônico, especificamente, entendemos que a única forma de sobrevivência das diversas espécies que o compõe é por meio de desenvolvimento de adaptações às condições estremas de sazonalidade. Na bacia amazônica o ano é dividido em apenas duas estações – a seca e a chuva. No período de seca os rios podem baixar cerca até 30 metros. Essa imensa redução da coluna d`água modifica a hidrogeografia da região, normalmente composta por rios de calhas que comportam grandes volumes de água. Dessa forma, somente uma parte da calha central dos grandes rios e lagoas nas regiões dos igarapés permanecem alagadas. Como mencionado anteriormente, a concentração de oxigênio está diretamente relacionada à temperatura da água e, quando o volume de um corpo d`água é consideravelmente reduzido, a temperatura do pequeno volume de água restante tende a aumentar significativamente. Com isso, as concentrações de oxigênio dos rios da bacia amazônica tendem a reduzir significativamente durante a estação seca. Uma espécie nativa pré-historicamente adaptada às condições de hipóxia é o Pirarucu (Arapaima gigas). Essa espécie realiza respiração aérea obrigatória por meio de um órgão do sistema digestório adaptadas para a absorção de oxigênio. Esse adaptação garantiu sucessos da espécie em épocas em que, mesmo na atmosfera, a concentração de oxigênio era baixa.
Outra espécie amazônica que pode ser encontrada em lagos e lagoas formados durante a estação seca é o Tambaqui (Colossoma macropomum) . Essa espécie, bastante conhecida pelo seu interesse comercial, apresenta uma adaptação morfológica pouco conhecida. Em cenários de hipóxia o Tambaqui altera a morfologia do seu lábio inferior, transformando-o em uma espécie de “pá”. Direcionando essa “pá”, que os nativos chamam de “aiu”, na interface água/ar e nadando continuamente, o Tambaqui direciona para às brânquias uma porção da água que contem maior saturação de oxigênio. Com isso, a espécie consegue sobreviver durante meses em ambientes completamente anóxios.
Além da adaptação morfológica, alguns peixes amazônicos apresentam adaptações metabólicas associadas aos processos respiratórios. Um exemplo é o que ocorre com o Jeju (Hoplerythrinus unitaeniatus). Esse espécie apresenta comportamento predatório voraz. Quando em cenário de hipóxia associada à grande movimentação muscular necessária para a captura da presa, grandes quantidades da enzima lactato desidrogenasse (LDH) são normalmente encontradas em seus tecidos brancos. Essa enzima indica a utilização de obtenção de energia por meio de vias anaeróbicas, ou seja, em condições de hipóxia, o Jeju altera seu metabolismo passando a ser dependente de quantidades mínimas de oxigênio para a manutenção da vida.
Além dos exemplos citados aqui existem outras diversas espécies que apresentam adaptações respiratórias, inclusive algumas que ainda não foram descritas. Em 2009, durante o período de aclimatação para os experimentos da minha monografia de conclusão de curso, em Manaus, foi observado um comportamento respiratório ainda não descrito para a espécie de peixe ornamental Otocinclus vittatus (popularmente conhecido como Limpa Vidro). Em um dia de calor intenso (temperatura ambiente por volta de 45 °C), apesar de estarem em tanques providos de aeração constante, foi observado um comportamento no qual os animais projetavam a região ventral do corpo na superfície da água e, com movimentos da nadadeira caudal, percorriam a lâmina d’água em direção cefálica realizando movimentos de sucção com a boca. Esse tipo de comportamento, assim como o do Tambaqui, propicia a ingestão de água da camada mais superficial, interface ar-água, a qual fornece maior suprimento O2 que pode ser captado por órgãos respiratórios acessórios, como estômago ou intestinos.
Dessa forma, evidencia-se que várias são as estratégias utilizadas por diversas espécies de peixes com o objetivo de utilizar os ambientes no qual estão inseridos, mesmo em cenários de baixíssima disponibilidade de oxigênio dissolvido.
Figura 1. Espécies de peixes amazônicos que apresentam algum tipo de adaptação respiratória. A) Exemplar de Arapaima gigas realizando respiração aérea. B) cavidade bucal do Tambaqui (Colossoma macropumum), sendo que na foto pode-se notar o lábio inferior que, em situações de hipóxia, pode ser estendido e apresentar mais de 15 cm de comprimento. C) Exemplar de Hoplerythrinus unitaeniatus e D) Otocinclus vittatus.