Por: Dr. Giorgi Dal Pont
Em muitas partes do mundo, especialmente na América do Norte e na Europa Ocidental, mudanças drásticas na prática agrícola ocorreram nos anos 50. Essas mudanças se acentuaram principalmente após a Segunda Guerra Mundial, quando tratores substituíram cavalos, fertilizantes químicos substituíram o adubo orgânico e a aplicação aérea de pesticidas se tornou comum.
Muitos agricultores foram encorajados a parar a rotação das culturas e se dedicar à monocultura e, com isso, grandes áreas de suas propriedades passaram a ser dedicadas ao cultivo de uma única espécie vegetal. Ao longo do tempo, a aplicação desse modelo agrícola requereu o uso de quantidades crescentes de fertilizantes sintéticos e pesticidas (Devillers 2003). Atualmente, os reflexos dessa mudança nos sistemas produtivos podem ser mensurados em inúmeros países do mundo. Com uma das maiores áreas dedicadas ao plantio de monoculturas (soja, milho e cana de açúcar), o Brasil é considerado uns dos maiores consumidores de agrotóxicos no mundo. Em 2015, por exemplo, foram pulverizados 899 milhões de litros de agrotóxicos nas lavouras brasileiras (Pignati et al. 2017).
De um modo geral, os pesticidas incluem muitas estruturas químicas diferentes e a natureza dos seus efeitos toxicológicos, sua persistência e o seu comportamento no ambiente, dependem de suas propriedades físico-químicas (solubilidade em água, coeficiente de partição, pressão de vapor, etc) (Wheeler 2002). Atualmente, dentre as diversas substâncias utilizadas como pesticidas, os da classe dos neonicotinoides (substâncias derivadas da nicotina) são considerados os inseticidas mais utilizados no mundo. Os neonicotinoides tem utilização legalizada em mais de 120 países e são considerados eficazes, principalmente, contra pragas sugadoras. Os inseticidas dessa classe são agonistas do receptor nicotínico de acetilcolina (nAChRs). Em baixas concentrações, eles se ligam fortemente aos nAChRs no sistema nervoso central de insetos e causam redução da estimulação nervosa. Em altas concentrações, podem causar bloqueio do receptor nAChRs, paralisia e morte. Os neonicotinoides se ligam mais fortemente aos nAChRs de insetos do que aos vertebrados (Gupta 2012). Por esse motivo, são considerados seletivamente mais tóxicos para os insetos e considerados como uma alternativa segura à substituição de pesticidas organofosforados, carbamatos e piretróides (Mahmood et al. 2016). De fato, experimentos laboratoriais têm demostrado que peixes apresentam tolerância aguda relativamente elevada aos neonicotinoides (Finnegan et al. 2017) em comparação às abelhas (Wood et al. 2018).
Nesse contexto, uma vez que a aplicação de pesticidas em culturas vegetais pode afetar diretamente as comunidades apícolas por meio da exposição aos aerossóis e as comunidades ícticas indiretamente, pelos processos de lixiviação e percolação de águas superficiais contaminadas (Tiryaki and Temur 2010), é interessante que os estudos ambientais direcionados ao esclarecimento dos efeitos dessas substâncias químicas considere diferentes compartimentos ecológicos (terrestre e aquático) (Hooper et al. 2003).
Tal abordagem, é considerada durante processo legal para a registro de uma substância para uso como agrotóxico no Brasil (Dal Pont et al. 2016). Uma série de ensaios ecotoxicológicos são exigidos por parte dos órgãos reguladores afim de se conhecer profundamente os efeitos sistêmicos que os princípios ativos de pesticidas comerciais podem causar. Dentre os ensaios de toxicidade, utilizados como indicador de sensibilidade à substância-teste, são exigidos dados de testes com plantas, bactérias, organismos invertebrados (anelídeos, microcrustáceos e abelhas) e organismos vertebrados (peixes, aves, roedores, logomorfos e, até mesmo, cães). Além dos testes de toxicidade agudos e crônicos, ensaios de alta complexidade como os de efeito de reprodução e prole para duas gerações e de carcinogenicidade de dois anos de duração são exigidos.
Apesar da aparente complexidade técnica para se atender as exigências dos órgãos reguladores, uma série de substâncias são registradas para uso como agrotóxico e apresentam uso legalizado/restringido no Brasil. Segundo Melo (2019), 169 produtos foram registrados pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento em 2019. Muitos desses pesticidas, já foram banidos em outros países por apresentarem potencial nocivo à população humana e ao meio ambiente, como é o caso dos pesticidas da classe dos neonicotinoides (Matthews 2015). Essa situação questiona a efetividade da aplicação da legislação brasileira vigente e evidencia uma condição dicotômica entre as bases legais e a afetiva atuação dos órgãos reguladores quanto ao controle das substâncias/produtos utilizados como agrotóxicos no Brasil.
Bibliografia consultada:
Dal Pont G, Silva DP, Ostrensky A (2016) Procedimentos para a obtenção de Registro para uso de agrotóxicos não-agrícolas em ambientes hídricos. Plankton – Solucões em Meio Ambiente
Devillers J (2003) Acute toxicity of pesticides to honey bees Honey Bees. CRC Press, pp 70-80
Finnegan MC, Baxter LR, Maul JD, Hanson ML, Hoekstra PF (2017) Comprehensive characterization of the acute and chronic toxicity of the neonicotinoid insecticide thiamethoxam to a suite of aquatic primary producers, invertebrates, and fish. Environmental Toxicology and Chemistry 36: 2838-2848 doi 10.1002/etc.3846
Gupta RC (2012) Veterinary toxicology: basic and clinical principles. Academic press
Hooper MJ, Mineau P, Zaccagnini ME, Woodbridge B (2003) Pesticides and international migratory bird conservation. Handbook of Ecotoxicology (DJ Hoffman, BA Rattner, GA Burton, and J Cairns, Jr, Eds) Lewis Publishers, Boca Raton, Florida: 737-754
Mahmood I, Imadi SR, Shazadi K, Gul A, Hakeem KR (2016) Effects of Pesticides on Environment. In: Hakeem KR, Akhtar MS, Abdullah SNA (eds) Plant, Soil and Microbes: Volume 1: Implications in Crop Science. Springer International Publishing, Cham, pp 253-269
Matthews G (2015) Pesticides: health, safety and the environment. John Wiley & Sons
Melo L (2019) Governo federal aprova registro de mais 31 agrotóxicos, somando 169 no ano, www.g1.com.br
Pignati WA, Lima FANdSe, Lara SSd, Correa MLM, Barbosa JR, Leão LHdC, Pignatti MG (2017) Distribuição espacial do uso de agrotóxicos no Brasil: uma ferramenta para a Vigilância em Saúde. Ciência & Saúde Coletiva 22: 3281-3293
Tiryaki O, Temur C (2010) The fate of pesticide in the environment. J Biol Environ Sci 4: 29-38
Wheeler WB (2002) Pesticides in Agriculture and the Environment. M. Dekker
Wood SC, Kozii IV, Koziy RV, Epp T, Simko E (2018) Comparative chronic toxicity of three neonicotinoids on New Zealand packaged honey bees. PloS one 13: e0190517-e0190517 doi 10.1371/journal.pone.0190517