Publicado em 16 de agosto de 2019
Por Ana Paula Bertão
A bacia do rio Amazonas contém a maior diversidade de espécies de peixes do mundo (Reis et al., 2016). Os peixes representam não apenas uma fonte de proteína muito acessível, mas também uma importante fonte de renda, especialmente para as famílias de menor nível socioeconômico. De fato, a pesca sempre foi uma atividade econômica importante em toda a região, mas para a maioria das espécies de peixes comercialmente importantes ainda não sabemos os parâmetros básicos de sua biologia ou o status de seus estoques. Encontrar o ponto em que a atividade pesqueira se torna sustentável é uma meta importante ainda a ser alcançada, e técnicas moleculares modernas podem definitivamente contribuir para uma tarefa tão complexa (Batista e Alves-Gomes, 2006).
Os peixes que habitam os lagos de várzea da Bacia Amazônica são submetidos a um ciclo hidrológico anual alternado entre altas e baixas temporadas de água (Hurd et al., 2016). Esses peixes dependem da variação temporal da conectividade acessível entre lagos, rios e florestas sazonalmente inundadas para completar seus ciclos de vida (Fernandes et al., 2009), como ilustrado na Figura 1.
O movimento dos peixes entre os diversos habitats e diferentes estágios do ciclo hidrológico, sugerem que esse sistema tem grande importância no processo migratório das espécies potamódromas neotropicais. Que estão intimamente ligadas a migração destas espécies, que realizam esta jornada em completar a reprodução e mantem a diversidade genética pelas futuras gerações.
A migração dos peixes é um fenômeno biologicamente complexo. Existem diferentes estratégias de migração, desde as longas migrações de diferentes espécies anádromas de salmão (que migram do mar para as nascentes dos rios) e chegam a nadar mais de 1 mil km até as áreas de desova na cabeceira dos rios. Há também os chamados peixes potamódromos, que vivem exclusivamente em rios, e migram rumo às nascentes para desencadear os processos biológicos que levam à reprodução.
A migração de peixes desempenha um papel importante nos processos ecossistêmicos dos rios tropicais, como ciclagem de nutrientes, dispersão de sementes e transferência de energia entre rios e até mesmo entre bacias diferentes (Winemiller e Jepsen, 1998; Anderson et al., 2011). Alguns destes peixes migratórios são intensamente explorados ao longo das suas rotas migratórias, que podem estender-se por milhares de quilómetros de rio, incluindo países distintos, tornando a gestão da pesca particularmente desafiante (Valbo-Jørgensen e Poulsen, 2000; Barthem et al., 2017). Além da pesca, os peixes migratórios tropicais também foram negativamente afetados pela degradação do habitat causada principalmente pelo avanço dos centros urbanos, desmatamento, crescimento de áreas agrícolas próximos as nascentes e córregos, como também por barragens nos rios para geração de energia hidrelétrica (Winemiller et al., 2016; Barthem et al., 2017) o que pode comprometer a segurança alimentar das espécies de peixes e populações ribeirinhas (Dugan et al., 2010; Orr et al., 2012). Além disso, estas barreiras que interrompem os rios também podem causar alterações drásticas na biota aquática e o rompimento do equilíbrio longitudinal dos rios (Coelho, 2008), associando as perdas de biodiversidade, recursos biológicos e genéticos (Hilsdorf et al., 2006; Agostinho et al., 2007; Barletta et al., 2010; Pelicice et al., 2014). Como também interferem na migração dos peixes, com o bloqueio da conectividade entre os habitats e os fluxos gênicos (Lucas e Baras, 2001; Carolsfeld, 2003; Dodd et al., 2017).
A migração livre é fundamental para a manutenção do estoque de peixes nos rios da região. Espécies como, por exemplo a dourada (Brachyplatystoma rousseauxii) tem o ciclo de vida migratório de aproximadamente 11.600 quilômetros, um recorde mundial de migração em água doce (Figura 2), assim como outras espécies piramutaba (Brachyptalystoma vaillantii), piraíba (Brachyplathystoma filamentosum), pirarara (Phractocephalus hemioliopterus), dentre outros grupos de espécies de peixes, também estão incluídos os cetáceos (botos) e quelônios (tartarugas e tracajás), que deslocam-se por milhares de quilômetros para reprodução e desova, além de alimentação em épocas de cheias e secas. Sem esta possibilidade, a população destas espécies podem chegar ao colapso, com a diminuição de variabilidade genética e a extinção da espécie (Nunes et al., 2019).
Rios saudáveis não apenas garantem a diversidade biológica das águas doces, como exercem papel fundamental para o equilíbrio da cadeia alimentar e das florestas, que por sua vez proporcionam uma série de serviços ecológicos fundamentais para a existência da vida. O benefício social e econômico resultante da exploração comercial dessas espécies dependem, intimamente, de políticas de manejo corretas que possam garantir o uso sustentável desse recurso. A interrupção do ciclo natural de migração de peixes também afeta diretamente o abastecimento de comunidades amazônicas inteiras, que dependem da pesca artesanal para se alimentar e gerar renda às suas famílias.
Referências
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